TESSITURA DE MULHER

SINOPSE


Este livro reúne cinco contos sobre mulheres. Neles, plasmam-se os temas universais do eterno feminino: amor, traição, perda, luto, violência doméstica, vingança, convenções sociais, mudança. Mas também há um fio que une tudo e todos. Por isso, cada conto remete para personagens do anterior e leva a outras do seguinte.

O ciclo fecha-se com o início.

Haverá um início e um fim?

Ou um eterno recomeço?

Trechos dos contos

*

Trechos dos contos *

"Sentiu o rosto molhado. Qualquer coisa pegajosa lhe colava a face esquerda ao chão. Num esforço ciclópico, abriu um olho e viu a banheira na sua frente. Lembrou-se da força que tinha feito, várias vezes, para levantar a cabeça de dentro da água. Ali não podia nadar nem suster a respiração, como quando era pequena. Abandonara-se àquele destino. Mas, afinal, ainda não era o fim. A cabeça fora levantada e os últimos murros e pontapés tinham-na deixado prostrada no chão. A porta da rua bateu com estrondo. Depois, o silêncio. Até agora. Quanto tempo teria passado? Outro estrondo na porta. Ele teria voltado? Não conseguia mexer-se. Nunca conseguiria fugir.

Junto de si, umas botas pretas grossas. Ele não tinha botas pretas grossas. E que barulho era aquele pela casa? As mãos dele também não eram assim cuidadosas.

— Não se preocupe. Vai ficar bem. A ambulância já vem a caminho.

Uma arma na cintura e um gorro na mão direita. O agente da polícia pousava a mão esquerda sobre o seu braço, na tentativa de a tranquilizar. Fechou os olhos e deixou-se ir numa serenidade de aceitação."

— Ainda há tempo

“Vitória ouve as acusações como se ele falasse de outra pessoa. Da mulher que ela fora até há dois minutos. É tudo verdade. Toda a sua vida fora uma mentira. Pouco podia fazer quanto ao passado. Ainda assim, fá-lo-ia.

É a sua vez de rodar o corpo, olhando os convidados num círculo quase fechado sobre si. A cabeça levantada, os olhos desafiadores. Com o ramo da noiva ainda na mão, aponta para o pequeno lago que se vislumbra na única abertura do círculo. As margens, ornamentadas de polidas pedras castanhas, dispostas umas por cima das outras, formando uma cerca baixa.

— São várias. Talvez cheguem para todos. Quem atira a primeira?

O silêncio faz-se mais baixo. Num instante, a acusada passa a acusadora. Cada um embrenhado nos seus pecados, nas suas lutas contra mágoas mal resolvidas. Os olhos baixam-se à passagem dos de Vitória.”

— Convidada pouco especial

“Sem hesitar, voltou ao carro, esquecendo a fome, e conduziu de regresso ao passado. Entrou no cemitério, que, apesar do sol, se mantinha lúgubre e dirigiu-se à campa da mãe. Por cima da terra batida depositou o chapéu-de-chuva negro e esburacado. Abriu o novo e colorido, não para se proteger do sol, mas para que a mãe percebesse que, naquele momento, ela se libertava da raiva das amarras do passado.

Respirou fundo e, de sorriso tranquilo, virou costas à campa. O seu futuro começava ali.

Amélia não sabia quão curto ele seria.”

— Jogo de xadrez

“Cláudia escorregou pela enésima vez no chão lamacento. A surpresa que o marido lhes tinha preparado era uma descida a uma caverna. Qualquer coisa sobre a sua infância, um lugar só dele. O telefonema urgentíssimo que lhe ocupava ouvidos e mente não a deixara perceber bem o que ele dissera. As suas palavras azedas, de comando, passavam para o outro lado do mar e abafavam as serenas do marido. Acedera a um dia em família, socializar, parentalidade, essas coisas. Lá alterou reuniões, processos,prazos. Ela, numa caverna.”

— A caverna

“E, numa curva do caminho, avistaram-na. Enorme, na sua imponência centenária. Como uma rainha, rodeava-se de uma dezena de súbditos mais pequenos, espaçados e secos. Nunca mais ninguém cuidara delas. O dono do terreno oferecera-o aos Baldios, mas nenhum homem se atreveu a mexer-lhe. A Figueira Maldita.

O passo seguro de Laurinda, dirigindo-se à pedra onde se sentou, qual genuflexório diante de um altar negro, mostrou a Hilário que aquelas visitas eram frequentes. Da figueira pendia a corda com o Nó de Carrasco, que nunca ninguém desfizera. O homem manteve-se a distância respeitosa, mas sem perder a amiga de vista.

E recordou.”

— Esticar o dedo

Laura Vasques de Sousa

“Nos contos reunidos em Tessitura de Mulher, com prosa temperada de poesia e acutilância em doses medicinais, Paula Campos leva-nos a viajar pelo multiverso que é ser mulher, pela sombra, pelo afeto, pelo desejo e pela inveja, pelo perdão e pela vingança, discorrendo sobre o que o separa, mas, acima de tudo, sobre esse elo fino, invisível e não palpável, mas inquebrável, que os une.”